sábado, 29 de novembro de 2008

Nunca é tarde

Sei que vivo neste papel selvagem de caçar verdades só existentes pra mim. O que é a realidade? Acho que, como disseram, a vida é realmente uma teia de ficções. De fato, não existimos, somos reais apenas através do olhar do outro. Sem observação não existimos. E esse papel de seguidor da felicidade ou de caçador de alegrias e verdades absolutas, nada mais é do que mais uma máscara. Máscara que cai de vez em quando. Alegoria de um carnaval ultrapassado, em que analfabetos e letrados dançam a mesma música. A realidade, se é que existe de fato, é essa: não existe diferença. Vivemos achando que somos diferentes dos outros e que um dia algo de especial vai acontecer conosco por sermos tão especiais, mas somos normais, somos comuns, somos todos iguais. O que nos faz diferente é a máscara que decidimos usar. Não dá pra acreditar no futuro dos humanos, porque de fato, não existimos. Somos todos personagens. (Analice Alves)
é uma música
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Futuro do presente - Analice Alves
Você se olha no espelho
E não se reconhece mais
Entenda que o medo
Te faz mais capaz
Não é tão cedo
Pra perdoar quem se ama

Você olha pra mim
E não me vê
Só quer saber se estou afim
Se tenho amor
Se quero carinho

Eu sou de carne e osso
Mas virei um poço de solidão
Eu sou um ser desumano
E liquidifico o seu coração

Eu sou mulher de fibra
Dessa iguaria não vais mais ter
Alguém como eu, difícil encontrar
Pague pra ver

Na televisão eu me distraio
Com bobagens quase importantes
No rádio uma canção tão triste
Faz-me chorar Só por um instante

Deixe-me ver o que aconteceu
Alguém bateu aqui a minha porta
E eu não sei se é a tristeza
Ou se é você que está de volta

O vento tombou o meu porta-retrato
E o tempo se encarregou
De te esconder no meu passado
Dê-me o futuro de presente
E o passado, meu bem, deixe passar

domingo, 23 de novembro de 2008

O corajoso

- Analice Alves

“Tento uma primeira hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante.”
(Silviano Santiago)
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Injustiça não foi bem o sentimento que me invadiu ao ver Rômulo deitado numa cama de hospital. Um jovem no leito de morte. Encostado à janela, observava aquele rapaz robusto, um jovenzinho parecido com o jovenzinho que há tempos eu fora. Cabelos alourados pelo sol, pele morena também de sol, barba por fazer. Ali, no hospital, a última coisa que faria era aparar a barba. Tinha certeza disso, pois era exatamente assim que pensava quando tinha aquela idade. Imaginei que se Rômulo realmente fosse eu, eu jamais estaria ali, encostado à janela, mesmo com olhos fundos e enrugados. Não chegaria nem aos trinta anos. Rômulo, deitado feito um idoso em última fase, deu-me pena. Rômulo era eu, era a juventude que eu tanto aproveitara e que a ele nada oferecida a não ser a morte como sorte, como produto dos erros. O rapaz não acordava e, quando sóbrio, só dava um risinho de lado, pelo canto da boca, sinalizando que estava vivo. Não parecia se importar com tamanha má sorte, não parecia desgostar do telefonema da morte, avisando pra se aprontar depressa. Lembrei de mim mesmo quando tinha a sua idade. Certa vez cortei a mão com o canivete de meu irmão mais velho e durante toda a minha juventude, tive orgulho de exibir a cicatriz. Talvez Rômulo estivesse nessa fase: a de curtir o corte. Mas o que me parecia era mesmo que não tinha medo de nada, nem da dama de vermelho. Rômulo exibia sua coragem através do tal risinho no canto dos lábios, através da entrega ao sono profundo, sem medo de não acordar de novo. Era como se, ao morrer, ele ganhasse uma autoridade que não tinha enquanto ser vivo. Era como se, morto, virasse um super homem das massas.
Rômulo, o corajoso, era o único enfermo jovem, o único ganhador das rifas semanais. Ganhava conjuntos de panelas, faqueiros, toalhas de mesa e dava tudo. Na verdade, ele nem tomava conhecimento dos prêmios. Sua mãe, uma jovem senhora de olhos azulados, pele morena e de baixa estatura, encarregava-se de distribuir os prêmios às senhoras do quarto vizinho. Rômulo, o corajoso, parecia um personagem de filme contemporâneo, desses que colocam um homem jovem e sofrido para que o público se humanize. Mas não era. Rômulo era real como uma pedra que rola com direção certa pelo asfalto. Assim como a chuva que antecede a primavera. Como queria que Rômulo fosse um personagem falante, embora não goste de sotaques juvenis. Porém, Rômulo era um ser humano desprovido de palavra. Não que não soubesse ou não tivesse mais forças para usar a língua, mas porque não tinha mais o que expressar. Se a morte estava vindo, tudo estava dito. Dito e feito. Rômulo, o corajoso, se foi antes que eu despertasse. Quando dei por mim, sua cama já estava vazia, ainda quente. Um rapaz com olhos avermelhados arrumava suas coisas numa bolsa grande, a enfermeira olhava pra mim com um olhar já esperávamos por isso. Tive raiva. Rômulo, o corajoso, morto, era como se a minha juventude tivesse partido. Tive revolta. Rômulo, o corajoso, era o jovem que eu fora e que, nesses tempos malucos, já não tinha mais sentido.Tudo me doía. Rômulo, o corajoso, era meu filho.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Pós

"A pós-modernidade existe para falar da pobreza da experiência"
(Silviano Santiago)

Miragens - Analice Alves
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Tenho medo de amores nocivos e de silveirinhas mal comidos.
Quero mais é que se dane essa tal de humanidade que a gente pinta nas cabeças
Ainda inocentes de tristeza. não tenho certeza das coisas certas e temo pelo que
Possa acontecer por essa falta de aventura. como verdura, legumes e frutas. Dane-se
a empadinha da esquina e o guara-vita da praia de cá. Dane-se o churrasco de domingo,
o sol a pino. seu dedo tem gosto de alho, seu beijo tem gosto de fel. sou mais um mistério
Escrevendo um misto de tédio e remédio pra passar seu tempo.
Talvez eu seja a fruta de alguém ou o cais de um aderivado. tenho medo do balde sem
Água, da torneira sem pia, do barco sem rumo, do teu peito sem mim. quero um reino feito
de parafusos coloridos e mosquinhos risonhos. quero um cão brasileiro que cante em inglês e entenda
alemão. Quero uma piscina de sopa quente pra me esquentar do frio causado pela porta
que você deixou aberta. vou ligar a tevê e ver teu rosto emoldurado e com som. Quero um peixe
azul anil que coma bolinhas de cocô ao sofrer de fome. Quero gritar depois de um gol do meu time
e te tirar pra dançar como se fosse príncipe. Quero amar além das palavras, entender a vida além
dos reflexos no espelho, quero mais do que a representação do dia-a-dia. Quero dez e não cinco, quero mil
e não dez. Quero mais do que números, mais que imagens, mais que miragens, mais que bobagens, quero teu colo.

sábado, 15 de novembro de 2008

Ele se foi

- Analice Alves

Ele se foi
Como um rapaz perdido no mundo da lua
Como um homem fugindo da vida e entrando
Em outra luta
Como a esfera que rola pela rua deserta

Ele se foi
Num passe de mágicas, no fim de setembro
Quando volta, não sei, choro quando penso
Perderei teu sorriso no retrato por um tempo

Ele se foi
Chorar na hora, não chorei, mas caí em desespero
Não sei se espero e digo que amo
Ou se ligo já agora e digo que odeio

Ele se foi
A própria distância me dá opções
De amá-lo de diferentes maneiras
Se foi como um poeta que se perde nas páginas
De um livro de Bandeira

Ele se foi
Se volta, não sei de fato
Mas preciso ver de novo o sorriso aberto
E ganhar um abraço apertado
De um cara que voltará mudado

Ele se foi
Ele se foi
Meu Deus! Ele se foi?
E eu aqui a sussurrar seu nome
Como uma canção moderna
E eu aqui a tropeçar
Nas minhas próprias pernas

Ele se foi
Ele se foi
Meu Deus! Ele se foi...
Não sei se espero o amor me matar
Ou se afogo meu peito
No seu próprio mar.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

amar é a maré *

Poema IX - Analice Alves

Queria que o pus
Da minha ferida
Transformasse-se em poesia
E que a cicatriz que ali se forma
Fosse mais do que tatuagem
Lembrança da dor que senti
Mais uma aprendizagem


Poema X - Analice Alves

Beije-me com cautela
Se não tiveres amor
Uses de tua reserva
Não o quero todo
Mas, por favor, um bom bocado!
Lembre-se que me formei
De tua costela
E, ao contrário de Eva,
Não tenho medo do pecado.
.
* é também um poema

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Welcome to the jungle

Discos voa-dores - Analice Alves

Escrevo sobre a vida
Mas queria declamar a morte
Esta é sorte de poucos
É triste por ser o fim
É feliz por ser um começo

A vida é luz apagada
O mundo é solitária escura
Onde desconhecidos me chutam
A fim de me atingir o ventre

Rezo e grito ao vento
Minha crença é no invisível
Mas, certas horas, meus olhos imploram
Eles querem ver-te, meu Deus!

Apareça iluminado em minha frente
Apareça de surpresa quando eu sair do banho
Apareça no banco de trás de um táxi

Longe de mim ser comparada à Schopenhauer
Mereceria algumas chibatadas por escrever
seu nome em tão obscuro poema
Longe de mim ser comparada à Augusto
Dele só quero os anjos e a costela

- Que saudade de escrever os poemas que nunca escrevi!

Meus olhos são discos voadores vazios
Caindo em Plutão
Meus dedos são patas de insetos
Quais as de Gregor Samsa

Deus, me abdusa com tua nave espacial
Leve-me contigo a um paraíso não-fiscal
Ou então, ressucite Guimarães
Pra eu me perder em seus sertões
Proteja os Homens que ainda amam

- Que vontade de lembrar minha morte pra ver se sofri!

Ó mundo, morrerei sem realizar meus planos
Ficaste desumano de tanta humanidade
Meus sonhos são impossíveis
Porque um ser solitário só constrói realidade.

- Que liberdade encontro eu na vida que nunca vivi?