sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Os poréns


Trecho da vida - Para contar depois – Analice Alves

(Fictício)

“Seu pai foi embora, mas ele te ama”, cresci ouvindo essa frase e, na verdade, não adiantou muita coisa. Minha mãe, coitada, ficou anos tentando me convencer de que o meu pai, aquele homem conhecido apenas por fatos e fotos, ainda, em algum lugar desconhecido, pensava em mim. Minha casa era cercada por fotografias de meu pai. Em todos os poucos cômodos havia pelo menos um retrato dele. Essa era uma das estratégias que minha mãe inventou para, de algum modo, me mostrar que ele estaria sempre presente. Um rosto tão combalido e estranho. Em todas elas, ele está com aquele sorriso forçado exibindo uma felicidade falsa ou, simplesmente, expressando um sorriso exagerado para a pequena e real felicidade. “Seu pai foi embora, mas ele te ama”, às vezes, irritava ouvir tantas repetições de minha mãe, mas eu sabia que tudo aquilo, toda aquela encheção de saco era só pra me ver mais contente. Cresci sem a presença de meu pai, sem telefonemas e incentivos paternos. Descobri os nomes e marcas dos carros por mim mesmo, me interessei pelos times futebolísticos e pelas meninas por minha conta. Sabia que mais cedo ou mais tarde, minha mãe contaria toda a história. Aquela vida cheia de dificuldades que levávamos, eu em colégio público tendo que trabalhar na feira depois, minha mãe ganhando uma miséria como costureira e lavadeira. Essa vida que era feia, mas honesta era fruto do sumiço de meu pai. Minha mãe, uma moça bonita que reservara a sua vida ao homem que viria a ser meu pai, casara virgem, de branco, na igreja da cidade. Aquilo tudo parecia o começo de uma vida de sonhos e, creio eu, ela nunca imaginou que um dia falaria ao filho “seu pai foi embora, mas ele te ama”. O que mais me orgulhava em minha mãe, era o fato de ela nunca ter sentido ou, pelo menos, nunca ter expressado rancor pelo meu pai. Às vezes, quando eu estava distraído fazendo a lição, vendo tevê ou lendo um livro, pegava-a olhando pra mim com um sorrisinho sereno. Ela dizia “agora você fez a cara do seu pai!”. Na infância, imaginava meu pai um homem de barbas feitas e camisa social. Imaginava que jogaríamos bola e falaríamos besteiras, imaginava nós dois pelas lojas enlouquecidos e confusos em pleno dia das mães a fim de comprar algo para a minha mãe. Imaginava ele indo embora, mas com o coração pesado por ainda me amar. Sempre pensei que amor entre pai e filho era puro e simplesmente imortal. Nunca cobrei explicações de minha mãe, se era difícil pra mim como filho, era ainda pior pra ela que se enchera de sonhos no início da nova vida. Quando ela sentou na beira de minha cama e começou a balbuciar o nome de meu pai, entendi que ali, naquela hora, ela contaria tudo. Seus olhos encheram-se de lágrimas, suas mãos tremiam. Olhei no fundo de seus olhos, apertei suas mãos e disse: Meu pai foi embora, mas ele me amava.