sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Eu não

– Analice Alves

Tudo foi embora
E como o tudo engloba o nada
Fiquei sem tudo e sem nada

A morte chegou e levou não apenas a vida
Mas a morte das pequenas coisas
Que faria minha poesia

E tudo foi embora: o corpo do homem que amo
As filhas gêmeas que não tive
E a cicatriz curada com álcool barato

A morte chegou e levou não apenas os vivos
Mas os mortos que me apareciam à noite
Debruçados na varanda a sussurrar em meus ouvidos

E tudo foi embora: os sonhos realizados e os planos
Ainda no papel. Os avós envelhecidos e os fetos
Ainda perdidos em meu ventre feito arranha-céu.

A morte veio sem medo, sem dor. Agonia maior
Senti em vida quando dei o primeiro beijo ou perdi
O apartamento em leilão. A morte veio e eu não.

Não entendi o seu grito. Fez-me um “psiu”, fingi que
Não era comigo. Mas ela me chamou pelo nome, apontou-me
com um dedo de fogo e sabia mais sobre a vida do que a própria.

E ela pula amarelinha, se enturma com as crianças e sente
Pena de as levar consigo. Os adultos estressados no trânsito,
Coitados, não são dignos de pena. Merecem um susto.

E eu fui embora. Com medo, a ouvir gritos de longe.
Alguém a me chamar do outro lado da ponte. Era o corpo
Do homem que amo e as filhas gêmeas que não tive.

- Era o futuro.