domingo, 23 de novembro de 2008

O corajoso

- Analice Alves

“Tento uma primeira hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante.”
(Silviano Santiago)
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Injustiça não foi bem o sentimento que me invadiu ao ver Rômulo deitado numa cama de hospital. Um jovem no leito de morte. Encostado à janela, observava aquele rapaz robusto, um jovenzinho parecido com o jovenzinho que há tempos eu fora. Cabelos alourados pelo sol, pele morena também de sol, barba por fazer. Ali, no hospital, a última coisa que faria era aparar a barba. Tinha certeza disso, pois era exatamente assim que pensava quando tinha aquela idade. Imaginei que se Rômulo realmente fosse eu, eu jamais estaria ali, encostado à janela, mesmo com olhos fundos e enrugados. Não chegaria nem aos trinta anos. Rômulo, deitado feito um idoso em última fase, deu-me pena. Rômulo era eu, era a juventude que eu tanto aproveitara e que a ele nada oferecida a não ser a morte como sorte, como produto dos erros. O rapaz não acordava e, quando sóbrio, só dava um risinho de lado, pelo canto da boca, sinalizando que estava vivo. Não parecia se importar com tamanha má sorte, não parecia desgostar do telefonema da morte, avisando pra se aprontar depressa. Lembrei de mim mesmo quando tinha a sua idade. Certa vez cortei a mão com o canivete de meu irmão mais velho e durante toda a minha juventude, tive orgulho de exibir a cicatriz. Talvez Rômulo estivesse nessa fase: a de curtir o corte. Mas o que me parecia era mesmo que não tinha medo de nada, nem da dama de vermelho. Rômulo exibia sua coragem através do tal risinho no canto dos lábios, através da entrega ao sono profundo, sem medo de não acordar de novo. Era como se, ao morrer, ele ganhasse uma autoridade que não tinha enquanto ser vivo. Era como se, morto, virasse um super homem das massas.
Rômulo, o corajoso, era o único enfermo jovem, o único ganhador das rifas semanais. Ganhava conjuntos de panelas, faqueiros, toalhas de mesa e dava tudo. Na verdade, ele nem tomava conhecimento dos prêmios. Sua mãe, uma jovem senhora de olhos azulados, pele morena e de baixa estatura, encarregava-se de distribuir os prêmios às senhoras do quarto vizinho. Rômulo, o corajoso, parecia um personagem de filme contemporâneo, desses que colocam um homem jovem e sofrido para que o público se humanize. Mas não era. Rômulo era real como uma pedra que rola com direção certa pelo asfalto. Assim como a chuva que antecede a primavera. Como queria que Rômulo fosse um personagem falante, embora não goste de sotaques juvenis. Porém, Rômulo era um ser humano desprovido de palavra. Não que não soubesse ou não tivesse mais forças para usar a língua, mas porque não tinha mais o que expressar. Se a morte estava vindo, tudo estava dito. Dito e feito. Rômulo, o corajoso, se foi antes que eu despertasse. Quando dei por mim, sua cama já estava vazia, ainda quente. Um rapaz com olhos avermelhados arrumava suas coisas numa bolsa grande, a enfermeira olhava pra mim com um olhar já esperávamos por isso. Tive raiva. Rômulo, o corajoso, morto, era como se a minha juventude tivesse partido. Tive revolta. Rômulo, o corajoso, era o jovem que eu fora e que, nesses tempos malucos, já não tinha mais sentido.Tudo me doía. Rômulo, o corajoso, era meu filho.

2 comentários:

Anônimo disse...

show esse texto garotinha! triste e bonito final emocionante.parabens.bjuuuu

João Velho disse...

Que triste... gostei muito e obrigado pelo comentário lá bj